terça-feira, 2 de junho de 2020

A menina de Dança - 09

Após tomar mais um banho e preparar o café da manhã, Suzuka ainda estava repleta de pensamentos conflitantes sobre a noite anterior. Não sabia se deveria sentir alívio por ter sido salva, vergonha pela humilhação sofrida, raiva pela sua impotência, medo ou admiração pelo seu salvador... o misto de sentimentos e sensações pesava no peito da Geisha, tornando a respiração pesada. Sentia como se algo ardesse em chamas em seu abdome, como se o ar lhe faltasse, como se sua alma sangrasse. Queria chorar de novo, mas as lágrimas não vinham. Decidiu tocar seu Shamisen em busca de conforto. Talvez as notas adocicadas do instrumento tivessem o poder de transportar-lhe para paisagens mais floridas. O pensamento em sua mãe lhe trouxe alívio, até as batidas em sua porta.

Ainda estava em roupas de baixo, então não abriu a porta. Apenas perguntou quem era. Ouviu uma voz grossa e firme responder a sua pergunta, e sentiu um frio na espinha ao ouvir a palavra "Shinsengumi". Os Lobos de Mibu farejaram o cheiro do sangue, e agora estavam a sua porta. Devia ficar feliz? aliviada? Mas sentiu medo. Porque? Era uma vítima. O Shinsengumi era proteção, era segurança. Mas sentiu o peito apertar. Não queria abrir a porta, não queria ver aqueles homens. Porque se sentia assim?

O sorriso triste de Gensai lhe veio a mente. Ela queria protegê-lo? O assassino brutal que matara três homens ontem a noite, dois na sua frente. Mesmo assim, lhe era grata. Não pensava mais no ódio por trás dos olhos furiosos do samurais, mas apenas na ternura em sua voz. E o pensamento de que o Shinsengumi poderia usá-la para pôr fim a vida de Gensai deu-lhe um nó no estômago. Suzuka apertou os polegares em resignação. Assim como ele a havia protegido ontem, ela o protegeria hoje.

Entreabriu a porta para que pudesse ver os homens, e esses pudessem ver seu rosto. Ambos usam o uniforme azul celeste com detalhes em branco, com a faixa na cabeça que traz o ideograma para "Lealdade". Ambos carregam espadas na cintura. Um dos homens é baixo e careca, com braços musculosos e constituição sólida. Uma vigorosa barba enfeita seu rosto sorridente. O outro, também com um sorriso no rosto, mas mais felino, é alto e tem o cabelo penteado para trás e preso num coque, e mesmo assim mantém uma franja de aspecto esquisito, embora não seja um homem feio. Ele tem a constituição menor que a de seu parceiro, mas sua presença é bem mais poderosa. Os olhos do homem são impressionantes. Olhos de lobo. Penetrantes. Poderosos.

Em tom cordial, ele se apresenta como Hajime Saito, Capitão da Terceira Divisão do Shinsengumi. E diz que tem algumas perguntas que gostaria de fazer.

Suzuka sorri e acena com as mãos pedindo desculpas. Diz que não está decente, e pergunta se os samurais poderiam esperar um pouco. O careca fica levemente corado, e tosse sem graça. Mas Saito apenas sorri e pede desculpas pela intromissão. Ele a deixa se vestir. Suzuka rapidamente olha para os objetos sobre a mesa: uma pequena espada e a carta que Gensai havia deixado sobre o corpo de sua vítima. Ela toma algum tempo para guardar os objetos longe dos olhos de seus visitantes, e então pede-lhes para entrar e se sentar junto ao kotatsu¹ enquanto ela lhes serve um chá. Ambos agradecem a cortesia da geisha com uma reverência e tiram os sapatos ao entrar na casa de Ohgo.

Após todos estarem acomodados e servidos, Suzuka senta-se com eles junto ao kotatsu, e ouve Saito dizer-lhe que houve um incidente próximo à casa de chá onde a Geisha trabalha. Um assassinato triplo. Eles sabem que a jovem é uma geisha popular na casa de chá, e gostariam de saber se ela tem alguma informação. Suzuka sente as entranhas congelarem, mas seus anos de treinamento lhe permitem esconder bem seus sentimentos. Ela sente que os homens do Shinsengumi sabem mais do que revelam, e que existe suspeita por baixo da máscara de cortesia.

A gueisha pisca os olhos de longos cílios e sorri, baixando os olhos para seu copo de chá.

-"Senhores, não sei do que estão falando. Ontem estava indisposta e não fui trabalhar, assim como não irei hoje. Porém, mesmo que soubesse de algo, não poderia dizer-lhes, pois a discrição é o fundamento principal do meu trabalho. O que acontece nas casas de chá, não sai de suas portas."- ela diz, para em seguida dar um gole rápido em seu chá Jokisen.

Saito retira de seu quimono um calhamaço de papéis, que lê em silêncio. Os olhos dele cruzam os de Suzuka, que imediatamente sente sua pele se arrepiar. Ele pergunta se a moça esteve em casa o tempo inteiro durante a noite anterior, então.

A jovem geisha começa a sentir medo dos dois, com sua intuição gritando-lhe para tomar cuidado. De forma convicta, ela olha para os homens e mente, confirmando com a cabeça que sim, permanecera em casa.

Saito sorri, e pergunta se a moça lhe faria a gentileza de mostrar-lhe as mãos. De forma hesitante, e sem entender a razão do pedido, Suzuka estica as mãos. Ele agradece gentilmente a toma-lhe as mãos com delicadeza. As mãos de Saito são fortes, grandes e ásperas, mas ainda assim seu toque é delicado e gentil. Ele desliza a ponta dos dedos pelas palmas das mãos de Suzuka, primeiro abaixo do polegar, e então abaixo dos dedos mínimo e anelar.

Ele fica sério por um momento no qual parece refletir. E então troca olhares tensos com seu parceiro. Suzuka sente a preocupação se revirar em seu estômago, mas Saito lhe sorri e solta as mãos com a mesma gentileza que as havia tomado.

-"Você tem belas mãos, Ohgo-dono. São macias como apenas as de uma boa geisha poderiam ser."- ele faz uma reverência, e se levanta. Seu parceiro se levanta junto dele. -"Já sabemos tudo o que precisamos. Desculpe incomodá-la Ohgo-dono. Caso lembre de mais detalhes, por favor, procure a sede do Shinsengumi."- e vai junto com seu parceiro até a porta, onde levam alguns momentos para calçar suas sandálias.

Suzuka os leva até a porta, mas está inquieta. Ela sente nos homens do Shinsengumi um comportamento predador. Ela lembra do homem na noite anterior, e isso a deixa irriquieta. Não permitia-se confiar no Shinsengumi.

Antes de sair, contudo, Saito se vira, ainda com um sorriso no rosto. Mas esse Suzuka é capaz de perceber imediatamente a falsidade, como se o homem duelasse consigo mesmo ao pronunciar cada uma das palavras que disse:

-"Uma última colocação, Ohgo-dono. O nome do falecido nas portas da casa de chá era Shiori Kousuke-dono. Era um jovem mercador de apenas vinte e cinco anos. Ele deixou viúva sua esposa grávida de seis meses, assim como um filho de apenas cinco anos. A família pretendia se mudar para Edo no próximo mês, fazendo planos para o bebê vindouro. Uma terrível tragédia, a senhorita não concorda?".

A geisha balançou a cabeça, concordando. no fundo havia se comovido com a história, mas achava que Saito estava feliz com a situação, como um sádico. Não confiaria no Lobo de Mibu.

O olhar de Saito mudou quando seus olhos se cruzaram mais uma vez. Estavam mais frios. O sorriso deixou seu rosto.

-"O mal prospera quando as pessoas se calam e se omitem."-O Capitão da Terceira Divisão mantém os penetrantes olhos de lobo fixos nos olhos de Suzuka. E então, após um momento tenso, ele volta a sorrir. -"Mas, tomamos muito do seu tempo. Lamento muitíssimo. Por favor, aproveite o resto do seu tempo livre."

A frase "aproveite o resto de seu tempo livre" pairou um pouco no ar. Uma ameaça? Suzuka tinha ficado paranóica em relação a Shinsengumi, mas os rumores sobre Hajime Saito eram graves e sombrios. Era um homem justo, porém severo.

Assim, os homens viram as costas e vão embora, deixando Suzuka sozinha e preocupando-se com seus próximos passos.



¹- Mesa baixa de madeira, sob a qual há um braseiro. Geralmente, mas nem sempre, a mesa é ladeada por futons. Muito usado em períodos frios no Japão, uma forma graciosa de receber visitas.

²- Chá de alto teor de cafeína, muito popular na época.

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